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Brincar em narrativas autobiográficas

- Maria de Fátima Vasconcelos da Costa -



Este trabalho de pesquisa pretendeu, a partir de narrativas autobiográficas de jovens em processo de formação para a docência, fazer um levantamento comparativo das condições em que se desenvolveram as práticas lúdicas de três gerações de brincantes: estudantes do curso de pedagogia da Universidade Federal do Ceará, seus pais e avós.

A pesquisa assenta-se sobre duas ordens de inquietações: a interrogação acerca do papel das práticas lúdicas na constituição da infância e, por consequência, nas práticas educativas; e o papel do discurso auto biográfico na formação docente. As referências teóricas da socioantropologia do jogo; da sociologia da infância da abordagem historiográfica do brinquedo e da pesquisa autobiográfica, fazendo dialogar objeto e método, apontam para a indissociável relação entre pesquisa e formação. O procedimento metodológico prevê o resgate das experiências lúdicas do passado, por um a turma de alunos da disciplina de Práticas Lúdicas, Identidade Cultural e Educação da Criança, do curso de Pedagogia da UFC, através da elaboração escrita de narrativas autobiográficas sobre suas memórias de infância, de seus pais e de seus avós. Os resultados sinalizam para um intenso envolvimento dos sujeitos no processo de construção das narrativas que não apenas deu visibilidade à relatividade histórica das formas de brincar, mas também possibilitou uma reconfiguração do passado e m relação a si mesmo e, sobretudo, uma leitura objetiva dos vínculos sociais que o engendram, possibilitando um percurso formativo autorreferenciado.

Das narrativas que dão conta do brincar nas diferentes gerações (a terceira, dos estudantes; a segunda, dos seus pais; e a primeira, dos seus avós), depreende-se que as permanências e as mudanças mais significativas nos modos de brincar são tributárias das condições de realização, no que se refere ao espaço físico e à natureza dos artefatos lúdicos utilizados, dos parceiros e da mediação tecnológica e midiática. No que se refere ao primeiro aspecto, é importante lembrar que a geração dos avós é oriunda da zona rural e viveu sua infância num momento histórico do nosso desenvolvimento em que a economia do campo jogava um papel importante. A maior parte dos sujeitos dessa geração afirma ter sido privada de brincar na infância, em particular os homens, que precocemente foram induzidos a trabalhar, à custa do que a geração seguinte pôde migrar para o meio urbano mais próximo ou para a capital do estado. Neste caso, podemos afirmar que houve uma mobilidade social intergeracional, mais marcante entre a primeira e segunda gerações. Alguns dos estudantes relataram serem os primeiros da família a cursar uma universidade.

Na primeira geração, a dos avós, frequentemente o brincar aparece no discurso dos narradores como ausente (negado), devido a imposição do trabalho precoce, assim como os brinquedos. Cabe aqui fazer uma distinção concei tual, uma vez que brinquedo como objeto cultural refere-se aos artefatos lúdicos especialmente produzidos para as crianças. Sendo assim, na ausência de brinquedos, é possível funcionalizar objetos para fazê-los cumprir o papel de suporte de brincadeiras. No entanto, sendo a brincadeira um significado dado à conduta pelo brincante, figuram como brincadeiras atividades como tomar banho de rio, andar a cavalo, colher frutas, cuidar dos animais, ouvir estórias de trancoso, caçar passarinho, participar em folguedos populares etc. Em alguns casos, os artefatos lúdicos são produzidos pelas próprias crianças ou pelos pais, cuja presença nos espaços lúdicos lhes garante certa visibilidade em relação às atividades infantis. As narrativas abaixo são recorrentes na maioria dos memoriais: [...] Minha avó e minha mãe passaram a maior parte de suas infâncias em fazenda, com isso tiveram brinquedos fabricados por elas mesmos e brincavam com vizinhos e amigos. (estudante de Pedagogia – terceira geração). [...]



À noite, as famílias ficavam nas calçadas de suas casas. E nós, crianças, brincávamos de cantiga de roda, passa anel, brincadeiras com bolas e etc... Depois de brincar, a mamãe me chamava para rezar o terço, em seguida iam dormir. (mãe – segunda geração) Os pais dos jovens estudantes, a segunda geração, já puderam brincar um pouco mais que a geração precedente. Também construíam seus próprios brinquedos e reconhecem nisso um valor adicional ao brincar. Os brinquedos, quando estão presentes, são predominantemente artesanais e de variedade limitada em relação à geração seguinte. A relação com esses objetos é fetichizada e marcada por fortes cargas afetivas. As brincadeiras são, sobretudo, coletivas. O lócus das suas brincadeiras é a rua ou os sítios, e em companhia de vizinhos e parentes (primos ou irmãos). Os adultos participam como parceiros, como provedores de suporte para as práticas lúdicas das crianças ou como facilitadores do contato com outras crianças.

A escola não é lembrada como lugar de atividades lúdicas, e estas ocupam todo o tempo livre das crianças. Por outro lado, aparecem as delimitações de gênero e classe, mediando as interações dentro e fora do espaço lúdico. A minha mãe nasceu em Jaguaribe , e a infância dela foi muito agitada, porque ela pulava muro, andava de cavalo-de-pau, caçava ninho de capote ... A boneca que ela tinha era de sabugo de milho. Elas mesmo que fabricavam... Não podia brincar com meninos. (estudante de Pedagogia – terceira geração). Os jovens estudantes do curso de Pedagogia, a terce ira geração, apresentam um diferencial importante em relação às gerações anteriores. Além de conviverem no espaço urbano, de experimentarem as práticas lúdicas como parte do currículo pré-escolar, são testemunhas do surgimento da era midiática, dos programas televisivos infantis (programas de auditório para crianças,seriados, desenhos animados etc.).

Nas suas memórias já aparecem restrições ao brincar no espaço público e férias no campo como momentos privilegiados de descontração e suspensão das restrições do ir e vir . Mesmo no ambiente doméstico, há controle do tempo e do espaço para as brincadeiras. Os brinquedos e os jogos industrializados estão muito presentes nas suas lembranças, alguns são subprodutos de consumo da cultura televisiva e, submetidos a estratégias de marketing (álbuns, filmes, programas etc.), tornaram-se objetos de desejo. A cultura lúdica é amplamente socializada tanto entre meninos quanto entre meninas.



Comparativamente, podemos afirmar que essa geração faz a transição do brincar: do âmbito doméstico e de espaços públicos abertos para o âmbito escolar, das e dos play centers. Certamente o brincar sempre esteve presente na escola; no entanto, agora se trata da própria escola promovê-lo. Os adultos disciplinam o brincar, mas já não participam tanto como parceiros, sendo mais forte a preferência das crianças pelo grupo de pares.


Das narrativas que dão conta do brincar nas diferentes gerações (a terceira, dos estudantes; a segunda, dos seus pais; e a primeira, dos seus avós), depreende-se que as permanências e as mudanças mais significativas nos modos de brincar são tributárias das condições de realização, no que se refere ao espaço físico e à natureza dos artefatos lúdicos utilizados, dos parceiros e da mediação tecnológica e midiática. Pretendia-se construir uma cartografia das práticas lúdicas que permitisse entrever as transformações sócio-históricas, tal

como significadas por aqueles que as experienciaram, possibilitando, com isso, o engajamento dos sujeitos num trabalho de auto-formação (NÓVOA; FINGER, 1988) .


Referências

NÓVOA, A.; FINGER, M. O método(auto)biográfico e a formação . Lisboa: MS/DRTS/CFAP, 1988. 14 p.


SALGADO, R.; SOUSA, S. J. As crianças na rede da cultura lúdica contemporânea. In:COSTA, M. F. V.; COLAÇO, V.; COSTA, N. B. (Org.) Modos de brincar, lembrar e dizer:discursividade e subjetivação. Fortaleza: Edições U

FC, 2007. 18 p


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