Procuro sozinha meditar sobre “qual o intuito de existir um agente do brincar?”. Primeiro, fico pensando no brincar; que sentido dar a esse verbo? Qual a natureza dessa ação? De súbito, me saltam os conceitos de mimese e leviandade. Porém, tão logo quanto encontro essas duas definições, já posso problematizá-las.
Passeios os olhos pela sala e vejo minha gata “caçando” uma pelúcia pela centésima vez. Ora, não preciso dar a ela um estatuto racional para ver que ela não está “caçando” verdadeiramente. Ela joga para um lado, para outro, chuta e morde despreocupadamente, “imitando” o que seria uma caça pra valer. No entanto, a mimese é uma particularidade antropológica. Ela não imitará a mim, nem a outros seres, ela age conforme a sua natureza sem a pretensão de fazer igual a qualquer coisa.
Nós, humanos, todavia, aprendemos nesse processo de imitar. Então, observo que nós fazemos mimese – em uma brincadeira qualquer em que há, por exemplo, o papel da mãe ou do pai - enquanto minha gata não, mas de qualquer forma ela brinca. A brincadeira é algo instintivo e natural, gostaria de apontar. Ainda é cedo para afirmar. Aqui fica só a observação de que ela não necessariamente é um ato mimético, e que está no seio da espontaneidade.
Em segundo lugar, penso na leviandade.
O lugar de despreocupação, da falta de seriedade. Ainda que esse seja um ponto forte ao senso comum do que é uma brincadeira, não posso deixar de negar em seu fundamento. Pois não há, no que pude aprender e experimentar, um brincar sem regras – ainda que mínimas. Em uma brincadeira se instaura um lugar com regras próprias, é claro, divergente do que está dado. Até mesmo o jogo mais livre, se fundamenta em um pressuposto. Portanto, o brincante não está leviano àquilo que se propôs. Ouso dizer que a brincadeira é ainda mais profícua quanto melhor se entende a regra e a vive.
Assim, fico com uma conclusão de que o brincar está próximo de um lugar que eu posso chamar de jogo espontâneo. Uma vez que é uma ação que pressupõe uma regra e se desenvolve sem alguma relação de igualdade (fidelidade) com o mundo exterior.
Então, resta a pergunta: qual o intuito de existir um agente do brincar? Por que esse jogo espontâneo requer alguém que o promova? Na Grécia antiga, a sociedade ateniense atentou que as crianças realizam essa ação e que isso era muito importante para elas. Platão quis a partir dessa constatação prescrever que o brincar deveria ser direcionado.
Assim o pedagogo (o escravo que encaminhava as crianças ao ginásio) deve ter se responsabilizado para orientar suas crianças e, com essa responsabilidade, se especializou – pois, não se deixa a deliberação de qualquer escravo a diretriz de uma ação muito importante, que é a brincadeira. O resto é história de como a pedagogia se desenvolveu como método de aprendizagem e não nos cabe discutir nesse momento.
O que quero chamar a atenção é de que um direcionamento para um jogo espontâneo é uma amputação do próprio jogo espontâneo. Por melhor que sejam as intenções de uma criação de sociedade e instrumentalizar esse feito, não é esse o interesse. Um agente do brincar não poderia ser platônico ao ponto de querer influenciar no brincar, e tomar esse ato como algo que deve ser direcionado.
Nesse momento, encontro meu motor e fundamento: o jogo espontâneo como uma ação irruptiva. Sem precedentes. Uma rachadura num terreno dado. É fácil observar que estamos em um terreno minado, a sociedade tem leis e ordens pré-estabelecidas que nem sempre vão de encontro ao bem comum. Vivemos em mundo em que a ordem é o capital. O capital é a regra, é o que está dado. O que está posto responde a uma hierarquia que o favorece. Tempos atrás a ordem poderia ser a militar (como a Grécia antiga) ou a religiosa (como a Europa feudal) – há sempre um conjunto ordenado que nos impõe um estilo de sentir e viver a vida.
Em contrapartida, há o brincar. Uma ação que vira as costas ao que está posto e traz em si uma fórmula nova. Claro que a ação se fixa em um lugar do tempo, no entanto, a experiência a gente carrega consigo. A experiência de uma regra nova, de uma racionalidade nova, de uma comunhão nova, de um sentir novo, o ser humano guarda. O mundo é um campo minado pelo capital e isso é um fato, mas não uma necessidade.
Por isso o agente do brincar deve existir: criar lampejos de uma vivência outra. Por isso estamos juntos com as crianças (que ainda não estão suficientemente contaminadas com a vivência hegemônica ocidentalizada que o capital nos reserva). Contudo, se quisermos propagar um momento revolucionário, não podemos nos esquecer dos adultos. Também eles brincam, e, sobretudo eles precisam de uma irrupção em seu cotidiano.
É pelo avesso da lógica imposta que deve existir o Agente do Brincar.
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