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Viver para Contar

Teresa Cândida G. Moreira



1. Infância, primeira.


Há cidades e cidades. Há lugares que nos abraçam e nos convidam ao desfrute imoderado de suas praças, ruas, parques, esquinas, selando em nossa existência a boa

aventurança do pertencimento.

Em minha primeira infância, três foram as cidades que me envolveram nessa vivência. Elas se misturam e criam em minha memória um lugar único, “amor de índio”: Camocim, Ipu e Uruburetama. Tão distintas entre si e tão semelhantes na acolhida, fui presenteada com as conversas nas calçadas, o balançar das cadeiras, a vizinhança bebendo cajuína, o brincar na pracinha. Eu só fiz mesmo foi nascer no Rio de Janeiro, no mais o que imperou foi esse viver nordestino, simplório, colorido, vivaz.




Sim, eu fui uma criança que muito brincou, tendo exercido meu direito ao lazer, à diversão e ao descanso. Eu tinha uma bicicleta “amarelo-queimado” e era possível rodar pelas calçadas e ousar ir um pouco mais longe sem temor, pois os vizinhos, mais que testemunhas, eram os guardiões de minha tranquila infância.

Havia sempre a natureza a ser contemplada, explorada e principalmente vivida: nos quintais nas casas, nos matos depois do muro das casas, e indo mais longe, em meio a bicas, cachoeiras e nas piscinas naturais moldadas generosamente pelo mar, sempre divino, maravilhoso.

A fase da pré-escola foi registrada nos certificados de conclusão que trazem fotos onde me apresento sentada à mesa da sala de aula, com a cara queimada de sol, ora tendo a bandeira brasileira ao lado, ora um personagem de Maurício de Sousa. As escolas foram públicas, e eu me lembro do cheiro de álcool e da impressão roxa nos papéis rodados por mimeógrafos. O lanche, comum e coletivo unia crianças de realidades distintas, mas que no brincar, no “faz de conta” faziam-se iguais: brincar é mesmo algo muito sério.

Minha relação com o Reino das Palavras já existia pela contação de história de minha

mãe e minha avó, em seus relatos de uma vida agreste da paisagem árida, da fazenda, dos bichos... o brincar construído pela imaginação, pelo conto e pelo afeto foi primordial no desenvolvimento de minhas habilidades, criatividade e personalidade.

Desta forma entendo que a ausência do brincar traz graves consequências ao ser humano em formação, motivo pelo qual ter me coloco como ativista do brincar desde sempre: eu era uma criança que gostava de crianças. Talvez por ter tido uma infância feliz ou sem grandes traumas, eu nunca me conformei em ver outra criança triste ou apartada de um grupo. Realmente me interessava saber como eu poderia integrar essa criança em uma brincadeira, na diversão, procurando animá-la.



Ouso afirmar que eu sempre tenha sido de coração, uma agente do brincar na forma

mais bruta e autêntica de sua acepção. O brincar sempre me pareceu essencial e por isso era antinatural constatar que existiam crianças que não brincavam. E mais: hoje também me preocupa o adulto que não brinca – e lá vou eu buscar a criança que não brincou ou que está esquecida, emudecida por alguma face cruel do mundo.


2. Infância, propriamente dita.


Quando minha irmã e eu completamos sete anos de idade, nossos pais decretaram que era preciso mudar para a capital: tínhamos nos tornado maior do que aquele lugar, diziam. Tinham planos para nós. Assim fomos para Fortaleza.

Na cidade que tem em seu nome o sinônimo para “forte” e “lugar protegido”, encontrei o exílio. A primeira e mais marcante mudança foi em relação à moradia. Talvez por acharem a cidade hostil e perigosa, talvez por acharem que se tratava da melhor opção, compraram um apartamento em um condomínio fechado, batizado de “Champs Elisés”, nome pretencioso para tanto concreto junto: três blocos com onze andares e quatro apartamentos por andar. As piscinas, o parquinho e o jardim não davam conta de equilibrar o cinza reinante do concreto, as garagens expostas em meio aos blocos. E havia ainda a garagem subterrânea com seus cheiros úmidos e sons gotejantes, que despertavam a minha imaginação, e por vezes era lugar secreto para as brincadeiras de esconde-esconde entre os carros. Tínhamos que fugir das vistas dos garagistas, porteiros e moradores, que nem desconfiavam que faziam parte da aventura.



Era um mundo diferente, e é aqui que minha vivência com o brincar assume nova identidade. Nesse tempo fui apresentada ao vasto mundo da leitura, presenteada com

enciclopédias e coleções de livros infantis de capa dura, cujo colorido miolo trazia histórias em profusão. Ah!... como era emocionante explorar o mundo de A a Z, conhecer lugares, pessoas, épocas e enredos tão diferentes de minha vida, tão fascinantes. Embora eu gostasse de jogar “carimba” (aqui em terras paulistanas conhecida como “queimada”), brincar com bola, correr em “polícia e ladrão”, nenhuma dessas brincadeiras me deixava muito longe da... biblioteca. Ou de uma livraria.

Nunca era um infortúnio esperar que meus pais fizessem a compra do mês, estando eu dentro da papelaria do shopping, por exemplo. O cheiro de papel despertava a menina-traça, entregue aos jogos de caça-palavras, das cruzadas e à leitura de revistas e livros.

Essa entrega à leitura reforçou minha sensibilidade e senso de observação do mundo e das pessoas, pois sentia que conseguia perceber o mundo de forma diferente, criativa. A alegria da criação pela palavra se reforçou nas brincadeiras teatrais, e aos onze anos eu já participava do grupo de teatro da escola e me apresentava em pequenas peças e números de dança. Formava-se ali um pequeno ser brincante, que dá vida às histórias que vivem nos livros e nas lembranças, que não separa o contar do cantar, o viver do sonhar e o brincar do amar.

Nas brincadeiras teatrais me percebi como protagonista de meus talentos, me percebendo agente e criadora do meu brincar. Gostava de dançar, cantar, imitar, interpretar.

A prática de esportes, que junto ao “brincar” e ao “divertir-se” está compreendido como

aspecto do “Direito à Liberdade” do Estatuto da Criança e do adolescente, foi-me assegurado com a prática de aulas de natação, – eu queria ser sereia – e nas brincadeiras com bola – basquete, volleyball.

As tecnologias também estiveram presentes no meu brincar infantil. Assim como me preocupa a utilização de tablets e celulares pelas crianças, também conforta a ideia de que uma vez sob a supervisão e orientação de um adulto, as crianças podem fazer bom uso de tecnologias para ampliar seu repertório de atividades, estimulando a criatividade, a improvisação ou a estratégia e a capacidade de análise para tomada de decisões. Neste último caso, os jogos de vídeo game entram como proposta.

Recordo-me de como era ser criança nos anos de 1980, de como eu gostava de assistir televisão e amava ouvir rádio. Tínhamos, minha irmã e eu, nossa banda de rock, cuja bateria tinha como tambor grandes caixas de tappaware e os microfones eram embalagens de desodorante. Tínhamos nossas composições, e o melhor: o registro em fitas cassetes gravadas em um aparelho portátil. Lá também ficaram registradas histórias fantásticas de casas mal assombradas, pequenas novelas e claro, nossas músicas. Também costumávamos aproximar o gravador da televisão e gravar as músicas de desenhos para depois reproduzi-las em “grandes espetáculos”.

“Se esperamos viver não apenas de momento a momento, mas sim verdadeiramente conscientes de nossa existência, nossa maior necessidade e mais difícil realização será encontrar um significado em nossas vidas.” Bruno Bettelheim


3. Adolescência e o início da vida adulta ou “ninguém vira adulto de verdade".


Foi um período em que por alguns anos também participei do grupo de jovens da igreja. Lá pude participar de ações junto a crianças em situação de vulnerabilidade. Estas situações indicavam que as crianças não tinham espaço para serem crianças. Os maiores tomavam conta dos menores e sem o acompanhamento de um adulto eram negligenciadas em seus direitos, sendo o brincar um deles. Lembro-me de propor brincadeiras com elas, que choravam muitas vezes sem expressar o porquê. Poderia ser fome. Poderia ser a reclamação de ausência de afeto. O fato era que o brincar trazia alívio; a maioria se acalmava, relaxava e aproveitava.


4. Futuro: um bicho que não existe?

“O mundo está cheio de bichos que existem e bichos que não existem.

Tem bicho que existe e a gente não acredita.

Tem outros que a gente não acredita que não existam.

No final das contas, não há tanta diferença entre um bicho que existe E um bicho que não existe. Todos os bichos existem:

Nas palavras dos livros e na cabeça da gente”

(Arthur Nestrovski, em “Bichos que existem & bichos que não existem”)

A partir do texto acima proponho uma reflexão sobre o futuro e as expectativas sobre como atuar como Agente do Brincar: o futuro ainda não existe, mas pode existir em

nossa imaginação. Existe hoje como sonho a ser realizado, planta da casa ainda não construída. Para tanto, cabe a nós o plantio das ações que nos trarão à vida esse “bicho” que (ainda) não existe.



O meu tempo hoje é de capacitação e aprendizado e sei que cada ação resultado de meu estudo e trabalho irá refletir na formação de uma rede mobilizadora, fomentadora do brincar – minha pretensão, confesso. Acredito que em nosso viver diário, não apenas dentro de salas de aulas e espaços de recreação, devemos manter nossa atuação de agentes. Assim como o livre brincar, a livre atuação é nesse sentido, de termos tão arraigada em nossa

vivência a importância de sermos agentes do brincar, que o ato se constitua permanente em nosso próprio viver e essência.


O futuro, esse bicho que me atrevo a desenhar em minha imaginação é gigantesco, com um igualmente gigantesco coração. E apesar das dimensões apresentadas é leve, e traz um grande sorriso no rosto. É sua marca registrada. Existindo em minha cabeça, passa ser a realidade de um lugar em que iremos habitar, ou pelo menos eu, pois assim o escolhi.


O futuro é o que cada um deseja desenhar e da cor que colorir – o meu é rosa.


“Vamos brincar?”



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