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O que se pode aprender ao pé de uma grande árvore? Contação de Histórias para crianças em Perus

- Vanessa Correia Gonçalves -

*Fotos de Letícia Santana. Maio e junho de 2019



Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam também no assovio do vento, nas nuvens do céu, nas suas cores, nos seus movimentos [...].

Paulo Freire



Foi pensando nessas perguntas e no desejo de refletir sobre arte e primeira infância que a autora dessas breves linhas criou uma proposta artística e brincante de contação de histórias para, e um pouco com, crianças pequenas ao pé de uma grande árvore no bairro de Perus, mais especificamente, no jardim da Biblioteca Municipal Padre José de Anchieta, em 2019.


A ideia nasce dentro um projeto cheio de propostas e atividades elaboradas pelas Jovens Monitoras Culturais , Letícia Santana e Vanessa Gonçalves (criadora da proposta e autora do presente texto), juntamente com a Coordenadora da biblioteca, Elizabeth Pedrosa. Nesse projeto, entre muitos desafios, estava o desejo de refletir e criar programações artísticas e culturais que dialogassem com diversas linguagens, destinadas a públicos e frequentadores com faixas etárias diversas e que ainda(s/vírgula) contribuísse nos diálogos, parcerias e aproximações que já existiam entre biblioteca, território e seus moradores.


Ao abrir espaço para que tais projetos e iniciativas ocupem a biblioteca, este equipamento público firma seu compromisso social e político(s/vírgula) e oportuniza um espaço muito importante para formação e aprimoramento cultural das agentes propositoras. O presente artigo busca trazer à tona o processo de criação dessa prática de contar história para crianças pequenas e relatar a experiência, de um dos dias, em que essa proposta foi colocada em prática com crianças e educadoras de um Centro de Educação Infantil vizinho à biblioteca, em Perus.

Reflexões e relatos acerca da experiência de Contação de Histórias para crianças pequenas

Além das perguntas relatadas no início do texto, os pontapés iniciais, basearam-se em alguns pressupostos e eixos de exploração que guiaram a construção da contação de história e sua realização; são eles: a intervenção e ressignificação do espaço; a exploração de elementos naturais locais; a construção de narrativas orais, sonoras e corporais; e, por fim, a experimentação de uma proposta formada por diversas linguagens.


Os primeiros pressupostos que conectam os eixos centrais de elaboração e concretização dessa contação de história no projeto, dentro da biblioteca, estão no reconhecimento, primeiramente, da criança de pouca idade como possível espectador e crer que ações culturais/ artísticas/ lúdicas contextualizadas podem ser experienciadas por elas é partilhar do entendimento de que esses sujeitos possuem, desde os primeiros anos de vida, capacidades e habilidades para ler e interpretar o mundo segundo os seus próprios parâmetros. (ROSA, p. 202, 2016).

E por essa razão, reconhece-se também quão necessária é a proposição de experiências estéticas e culturais para a primeira infância que dialoguem com suas especificidades e formas de enxergar e elaborar o mundo, dentro de equipamentos culturais, como uma forma de garantia ao direito dessas crianças à fruição estética, apreciação e participação na produção de bens culturais.

O segundo aspecto, está ligado à concepção de que a criança pequena é movida por uma percepção multissensorial, em que todo o seu corpo está engajado na sua interação com o outro, com o que está à sua volta e na forma como articula os saberes e as experiências adquiridas e construídas, fazendo com que, por meio da estruturação de múltiplas linguagens, elas possam ampliar “o repertório que servirá de base as suas criações” (LEITE, p. 97, 2015).


Partindo desses dois pressupostos fundamentais, o próximo passo, foi construir uma narrativa, recortando e colando histórias que ouvi com aquilo que, naquele momento, mais me despertava vontades e sensações. Me recordei dos contos de origem, daqueles contos em que um pouco de terra e água dão origem a tudo que hoje existe. Além da palavra oralizada, fui lembrando e elaborando uma série de músicas, sons, imagens e movimentações corporais que não poderiam deixar de configurar essa narrativa. Separei um agogô feito de coco, um chocalho com grãos, duas partes de um coco, um ocean drum improvisado e alguns apitos com sons diversos. Experimentei algumas músicas cantadas com as palavras e, aos poucos, a narrativa oral, a narrativa sonora e a narrativa visual concretizavam o que seria a Contação, mas ainda faltava algo.


No segundo momento, ao refletir sobre as formas e meios de percepção e conexão com aquilo que nos cerca, percebi que aqueles elementos fundantes, que estavam na origem da narrativa, a água e a terra, não tinham ainda adentrado na construção. E como falar desses elementos tão concretos e reais, sem ao menos ter a oportunidade de tocá-los? Foi então que passei a coletar uma série de materiais naturais para compor a narrativa de modo que, além de oral, sonora, visual e corporal, ela seria vivenciada também pelo toque, pela relação da nossa pele com esses materiais.


Depois, busquei dentro da biblioteca um espaço onde a proposta poderia ser realizada. Refleti sobre como aqueles espaços, antes marcados pelo silêncio, hoje são constantemente ressignificados com a presença de apresentações artísticas, oficinas, ocupações dos coletivos do território, rodas de conversas etc., e que essa seria mais uma oportunidade de intervenção no espaço externo da biblioteca, no seu jardim, mais especificamente. Além de ser um espaço de passagem, de descanso e de compartilhamento cultural, essa área abriga árvores muito antigas e que, volta e meia, são referenciadas nos relatos e memórias de antigos frequentadores. Por isso, a Contação de História aconteceu embaixo de uma das árvores mais antigas do jardim.

Construída a narrativa, coletados os materiais e escolhido o espaço, por fim, convidamos os CEIs vizinhos à biblioteca para que trouxessem suas turmas, em dias e horários combinados, para participarem da proposta. É importante relatar que tais CEIs já possuem uma relação e parceria muito estreita com a biblioteca, participando de diversas programações durante todo o ano e utilizando os espaços e acervos da biblioteca onde realizam suas propostas pedagógicas com as turmas.


Em um dos dias combinado, recebi as crianças no jardim em silêncio. Atentas, elas observaram tudo que estava à minha volta, também as observei, essa turma tinha entre 3 e 5 anos. Respirei fundo e iniciei a Contação da História, tocando o agogô feito de coco. A participação delas e deles foi imediata. Conforme a narrativa ia se apresentando, eu ia convidando as crianças a participarem e se relacionarem com aquele acontecimento artístico, seja pelo toque, pela escuta, pelo olhar, ou mesmo pelo corpo todo, quando levantávamos para ver o ponto mais alto da árvore que estava a nossa volta, ou para pegar os barquinhos feitos de papel que iam navegar por um rio, que nós compartilhávamos dentro da nossa história.


Quase no final da narrativa, eu coloquei entre mim e elas um punhado de argila, a “nossa matéria para a criação”, e fiz um convite para criarmos uma parte desse mundo. Rapidamente, algumas foram pegando seus punhados, outras estranharam a textura e resistiram, até que decidiram por si mesmas experimentar. Sem nenhuma indicação, algumas pegaram elementos do jardim, folhas e gravetos que caiam da árvore, também terra e água que já haviam sido experimentados pelas crianças durante a narrativa. Nesse tempo, eu assumi uma postura de observadora e boa parte delas continuaram a narrativa, nomeando, misturando e conversando entre elas, comigo e com as educadoras que acompanhavam. Passado um tempo, encerrei com algumas frases e me despedi da turma, mas não daquela experiência.

O que se pode aprender ao pé de uma grande árvore?


Ao realizar algumas vezes essa proposta, notei que nela também havia uma natureza brincante, seja porque vários elementos se tornam, durante a contação, materiais de brincar, seja porque, ao final, as crianças de fato brincam com aquilo que foi apresentado e disponibilizado. E ao observá-las, constatei que em boa parte das vezes, aquelas crianças estavam elaborando uma leitura própria daquela vivência compartilhada, a partir do vivido, mas também a partir de seus próprios referenciais culturais e sociais, à medida que iam trazendo à tona, no decorrer, comparações, diferenciações e relatos diversos.

Passado um tempo, percebo o quanto para mim, agente propositora, essa experiência foi significativa, divertida e trouxe diversas reflexões.

Percebi que ainda tenho muito o que aprender sobre as crianças pequenas e compreendi que esse foi apenas um pontapé inicial para uma elaboração que poderá ser mais aprofundada, com mais histórias e contos elaborados, especialmente para esse tipo de proposta, com uma pesquisa mais minuciosa em cada um dos eixos citados, na busca de materiais diversos que poderão ser utilizados e sobre, propriamente, as particularidades de interlocução com as crianças pequenas.

Essas e outras noções, adquiridas na experiência, também tiveram a oportunidade de serem revisitadas e refletidas a partir dos aportes teóricos disponibilizados e aprendidos durante a formação em Agentes do Brincar®. Vivenciar essa formação hoje possibilita que, em um amanhã próximo, essa proposta seja modificada, aprimorada, mais bem planejada e que sua realização seja possível em outros contextos, pois as trocas e os aprendizados experienciado durante o curso, com formadores com trajetórias diversas e com o coletivo de Agentes do Brincar® que estamos formando, têm sido importantes alicerces para práticas e realizações futuras.


Gostaria ainda de, para encerrar, evidenciar a importância e necessidade que espaços e produtores/as culturais reconheçam as crianças da primeira infância como públicos da cultura e, dessa forma, incentivem produções artísticas, nas mais diversas linguagens e, especialmente, pensadas para essa faixa etária, além de possibilitar espaços para que as crianças possam, como protagonistas e fazedoras de cultura, participar de processos criativos e inventivos sobre a realidade cultural da cidade.


Referências Bibliográficas


FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se complementam. São Paulo: Cortez, 2011.


LEITE, Maria Isabel. Arte e expressão. In: PARK, Margareth Brandini; FERNANDES, Renata Sieiro (org.). Programa Curumim: memórias, cotidiano e representações. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2015. p. 95-110.


NALINI, Denise (coord.). Conexões: a poética das crianças de 0 a 3 anos e a arte contemporânea. São Paulo: Instituto Avisa Lá, 2015. Disponível em: https://avisala.org.br/wp-content/uploads/2017/09/Livro-Conex%C3%B5es_Livro.pdf. Acesso em: mai. 2020.


RIBEIRO. Kelly Cristine. Contação de histórias: seguindo o curso de suas águas. 2013. 197f. Dissertação de mestrado – Universidade Estadual da Bahia. Faculdade de Educação, Salvador, 2013.


ROSA, Lucelina Rosseti. Cultura e primeira infância: perspectivas para as crianças de pouca idade. Revista do Centro de Pesquisa e Formação do SESC, São Paulo, n. 03, p. 186-206, nov. 2016. Disponível em: https://www.sescsp.org.br/files/artigo/11949853-4c6c-4059-a05e5626f8e1a4e4.pdf. Acesso em: mai. 2020.


Secretaria Municipal de Cultura. Programa Jovem Monitor Cultural 2020 abre inscrições. Supervisão de Formação Cultural. 2020. Disponível em: http://supervisaodeformacao.prefeitura.sp.gov.br/index.php/editais-formacao-smc-pjmc-2020/. Acesso em: 20 de mar. de 2020.



Anexo: Retratos da experiência de Contação de Histórias para crianças pequenas em Perus.


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